O princípio da não surpresa, previsto no art. 10 do CPC, prevê que o magistrado não poderá decidir com base em fundamento sobre o qual a parte não teve oportunidade de se manifestar. Essa regra se aplica, inclusive, às matérias aptas a serem resolvidas de ofício, sem provocação das partes.

A despeito dessa regra, a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem mitigando a sua aplicação efetiva, mormente nas hipóteses nas quais as matérias analisadas, sem prévio conhecimento das partes, não causam prejuízo ao direito subjetivo dos litigantes.

Confira, a seguir, aresto em que restou consignada a possibilidade de afastar a aplicação do art. 10 do CPC em decisões que reconhecem algum óbice de admissibilidade do recurso especial, in verbis:

PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO N. 3/STJ. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA. NÃO CARACTERIZAÇÃO. CONTRADITÓRIO COMPROVADO. NULIDADE DO ACÓRDÃO PROFERIDO NA ORIGEM. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. Ao se compulsar o cabedal processual, verificar-se que às fls. 176/179 (e-STJ), há o efetivo contraditório da parte ora recorrente, que em réplica à contestação, rebateu as alegações de ilegitimidade ativa proposta pela procuradoria do Estado. Se houve o prévio contraditório acerca desta questão processual posteriormente decidida pela magistrada, não se pode asseverar que houve surpresa processual na decisão que declarou a ilegitimidade ativa da Associação ora recorrente. 2. Ademais, a decisão que averigua os requisitos legais e constitucionais para a admissão do recurso não viola o artigo 10 do CPC/15, pois “a aplicação do princípio da não surpresa não impõe, portanto, ao julgador que informe previamente às partes quais os dispositivos legais passíveis de aplicação para o exame da causa.” (EDcl no REsp 1.280.825/RJ, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 27/06/2017, DJe de 1º/08/2017). 3. Agravo interno não provido.

(AgInt no AREsp 1512115/MS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/09/2019, DJe 10/09/2019).

Nessa mesma esteira de entendimento, em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento segundo o qual seria despicienda a aplicação do princípio da não surpresa nas situações em que o juiz se declarar absolutamente incompetente.

Vejamos:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ORDINÁRIO. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO N. 3/STJ. MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO JUDICIAL. DECISÃO PELA INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO JUÍZO. DECLINAÇÃO DE COMPETÊNCIA DE OFÍCIO. PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA (ART. 10 DO CPC/2015). NÃO INCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE TERATOLOGIA NA DECISÃO DE DECLINAÇÃO DE COMPETÊNCIA. UTILIZAÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA COMO SUCEDÂNEO RECURSAL. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.

(…)

  1. O art. 10 do CPC/2015 faz referência expressa ao princípio da não surpresa. Assim, em regra, o magistrado não pode decidir com base em algum fundamento que as partes não teve oportunidade de se manifestar.
  2. Contudo, a norma do art. 10 do CPC/2015 não pode ser considerada de aplicação absoluta, porque o sistema processual brasileiro desvincula a necessidade de atos processuais da realização de diligências desnecessárias.
  3. A jurisprudência do STJ já admite o caráter não absoluto do art. 10 do CPC/2015, uma vez que entende pela desnecessidade de intimar o recorrente antes da prolação de decisão que reconhece algum óbice de admissibilidade do recurso especial.
  4. A controvérsia atinente à violação do princípio da não surpresa decorre de possível incompetência absoluta. Eventual vício dessa natureza é considerado tão grave no ordenamento que, além de poder ser pronunciada de ofício, configura hipótese de ação rescisória (art. 966, II, do CPC/2015).
  5. Ademais, a declaração – em si considerada – atinente à declinação de competência absoluta não implica prejuízos ao requerente. Afinal, a decisão judicial não se manifesta quanto ao mérito da controvérsia. Esse deverá ser devidamente analisado (caso não haja preliminares ou prejudiciais de mérito) pelo juízo competente após o transcurso do devido processo legal. Ou seja, a declaração de incompetência não traduz risco ao eventual direito subjetivo do requerente. Na verdade, a declinação de competência absoluta prestigia o princípio do juiz natural e, consequentemente, o escopo político do processo.
  6. Como nos casos em que não se reconhece violação do princípio da não surpresa na declaração de algum óbice de recurso especial, na declaração de incompetência absoluta, a fundamentação amparada em lei não constitui inovação no litígio, porque é de rigor o exame da competência em função da matéria ou hierárquica antes da análise efetiva das questões controvertidas apresentadas ao juiz. Assim, tem-se que, nos termos do Enunciado n. 4 da ENFAM, “Na declaração de incompetência absoluta não se aplica o disposto no art. 10, parte final, do CPC/2015.”
  7. Ademais, o ato judicial impugnado pelo mandado de segurança é decisão monocrática proferida em sede de ação ordinária que visa à anulação de ato que determinou perda de graduação do ora recorrente. Não há teratologia nessa decisão porque os membros do Poder Judiciário possuem competência para analisar a sua competência (kompentez kompentez). Além disso, independente da natureza do ato de demissão, a análise da competência está fundamentada tanto pela Constituição Federal quanto pela Constituição Estadual. Não havendo manifesta ilegalidade, não é cabível mandado de segurança contra ato judicial.

(…)

  1. Agravo interno não provido.”

(AgInt no RMS 61.732/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/12/2019).

Ou seja, caro leitor, conforme atual entendimento do STJ, o princípio da não surpresa, previsto no art. 10 do CPC, não é absoluto, podendo ser flexibilizado quando o magistrado decidir sobre matéria que, por ser de rigor o exame (competência em função da matéria ou requisitos de admissibilidade recursal, por exemplo), não constitui inovação no litígio e não prejudica o direito subjetivo das partes.

EQUIPE IDC (Luiz Cezare e Felipe Moreira).