Negócios Jurídicos Processuais no Processo De Execução e Os Poderes do Juiz: alguns apontamentos do STJ no REsp nº 1.810.444/SP

Por Luiz Cezare

 

Uma das grandes inovações do CPC/15 foi a adoção da cláusula geral dos negócios jurídicos processuais (arts. 190 e 191), prevendo a atipicidade como meio apto à adequação dos procedimentos às especificidades da causa e às vontades e conveniências das partes, permitindo que elas possam exercer o autorregramento e gestão de seu processo.

É certo, por outro lado, que os negócios processuais típicos já estavam previstos na legislação anterior, conforme exemplifica especializada doutrina: “eleição de foro (art. 111); prazos dilatórios (art. 181); convenção de arbitragem (arts. 267, VII e 301, IX); transação judicial (art. 268, III; 475-N, III e V e 794, II); distribuição do ônus probatório (art. 333, parágrafo único); aditamento de audiência (art. 453, I); liquidação de sentença por arbitramento (art. 475-C, I)”. (Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: Cabral, Antonio do Passo; Nogueira, Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais. São Paulo: Juspodivm, 2015. pp. 27-61).

Apesar do avanço do CPC/15 no tema, o legislador, inegavelmente, deixou de prever contornos claros para a adoção dos negócios jurídicos processuais. Para aparar essa aresta, importante citar as lições de Humberto Theodoro Junior que propõe os seguintes requisitos a serem preenchidos para a validade do negócio processual, vejamos: “i) a causa deve versar sobre direitos que admitam autocomposição; ii) as partes devem ser plenamente capazes; iii) a convenção deve limitar-se aos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais das partes (art. 190, caput). O ajuste pode ocorrer antes ou durante a marcha processual.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. V. 1.59. ed. (2. Reimp). rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 501).”.

Mesmo com o esforço da doutrina em fixar parâmetros mínimos para a análise da validade dos negócios jurídicos processuais firmados pelas partes, uma das principais questões suscitadas pelos estudiosos, com grande impacto na aplicação prática do instituto, é a seguinte: os negócios processuais podem interferir nos poderes do juiz?

Sobre o tema, caminha bem na doutrina especializada e em parte da jurisprudência a ideia de que os negócios jurídicos processuais não se sujeitam a um juízo de conveniência do juiz, de modo que sua atuação se limitará no plano da eficácia do negócio firmado entre as partes, e não da existência ou validade do pacto.

Nesse sentido, ensinam Fredie Didier, Lenio Streck e Dierle Nunes: “quando a convenção processual interferir em poderes, deveres e faculdades do juiz, o negócio somente se perfectibilizará se esse, baseado em um juízo discricionário, concordar com a pactuação. Ainda assim, ele não será parte da convenção, pois não titulariza situações processuais em nome próprio, mas sim em nome do Estado. Assim, não pode dispor de situação alguma. A concordância do magistrado atuará no plano da eficácia somente, e não da existência ou validade da pactuação” (CUNHA, Leonardo Carneiro da (Org); FREIRE, Alexandre (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil: de acordo com a Lei n. 13.256/2016. Rio de Janeiro: Saraiva, 2016, p. 319).

Sob o prisma destes conceitos, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou a discussão acerca da validade de negócio jurídico processual firmado entre as partes em que permitia que a credora obtivesse liminarmente o bloqueio dos ativos financeiros da parte devedor, em caráter inaudita altera parte e sem a necessidade de se prestar garantia, vejamos:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. LIBERDADE NEGOCIAL CONDICIONADA AOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS. CPC/2015. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL. FLEXIBILIZAÇÃO DO RITO PROCEDIMENTAL. REQUISITOS E LIMITES. IMPOSSIBILIDADE DE DISPOSIÇÃO SOBRE AS FUNÇÕES DESEMPENHADAS PELO JUIZ.

  1. A liberdade negocial deriva do princípio constitucional da liberdade individual e da livre iniciativa, fundamento da República, e, como toda garantia constitucional, estará sempre condicionada ao respeito à dignidade humana e sujeita às limitações impostas pelo Estado Democrático de Direito, estruturado para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais e a Justiça.
  2. O CPC/2015 formalizou a adoção da teoria dos negócios jurídicos processuais, conferindo flexibilização procedimental ao processo, com vistas à promoção efetiva do direito material discutido. Apesar de essencialmente constituído pelo autorregramento das vontades particulares, o negócio jurídico processual atua no exercício do múnus público da jurisdição.
  3. São requisitos do negócio jurídico processual: a) versar a causa sobre direitos que admitam autocomposição; b) serem partes plenamente capazes; c) limitar-se aos ônus, poderes, faculdades e deveres processuais das partes; d) tratar de situação jurídica individualizada e concreta.
  4. O negócio jurídico processual não se sujeita a um juízo de conveniência pelo juiz, que fará apenas a verificação de sua legalidade, pronunciando-se nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou ainda quando alguma parte se encontrar em manifesta situação de vulnerabilidade.
  5. A modificação do procedimento convencionada entre as partes por meio do negócio jurídico sujeita-se a limites, dentre os quais ressai o requisito negativo de não dispor sobre a situação jurídica do magistrado. As funções desempenhadas pelo juiz no processo são inerentes ao exercício da jurisdição e à garantia do devido processo legal, sendo vedado às partes sobre elas dispor.”.

(REsp 1.810.444/SP, Quarta Turma do STJ, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, julg. 23.02.2021).

Em seu voto, o ministro relator manteve o acórdão do Tribunal a quo que rejeitou a aplicação do aludido negócio jurídico processual, uma vez que:

“(…) o objeto de negociação investigado neste recurso merece reprimenda também pelo fato de transigir atos de titularidade judicial.

Ademais, conforme demonstrado, a definição dos limites impostos às partes na elaboração do negócio jurídico processual é eminentemente casuística, havendo, no entanto, premissas “universais” a serem respeitadas, invariavelmente.

Nessa linha de intelecção, no que respeita o caso concreto, é possível afirmar que, todas as vezes que a supressão do contraditório conduzir à desigualdade de armas no processo, o negócio processual, ou a cláusula que previr tal situação, deverá ser considerado inválido.”

Desse modo, prezado leitor, o julgado ora analisado reflete importante fixação de premissas do Superior Tribunal de Justiça acerca dos negócios jurídicos processuais, especialmente aqueles que, seja de modo direto, seja de modo indireto, esbarram nos poderes do juiz ou mitiga princípios processuais basilares – como, no caso, o princípio do contraditório -, permitindo o controle pelo Poder Judiciário.