Este tema, além de polêmico, há muito tem sido mal compreendido pela jurisprudência. E o Código, na nossa visão, infelizmente acabou por contribuir ainda mais com essa confusão.

De início, cabe destacar que a fraude à execução é instituto de direito processual que se liga a um fenômeno endoprocessual (com consequências para fora do processo) e que, de acordo com o art. 593 do CPC/73,

(…) deve ser entendida como a declaração da ineficácia da alienação ou da oneração de bens que dificulta ou inviabiliza a prestação da tutela jurisdicional quando dirigida ao patrimônio amplamente considerado (execução por quantia certa) ou, mais especificamente, a um dado bem especificamente considerado no patrimônio do executado (execução para entrega de coisa). (Cassio Scarpinella BUENO, Curso sistematizado de direito processual civil, p. 220).

Na fraude à execução, portanto, não se fala no plano da validade do negócio jurídico, mas em específica ineficácia em relação ao exequente (cf., REsp. 1.141.990/PR, 1ª S., j. 10.11.2010, rel. Min. Luiz Fux, DJe 19.11.2010). Essa ineficácia não opera efeitos perante outros credores. Portanto, “dois requisitos formam a fraude contra o processo executivo: a litispendência e a frustração dos meios executórios” (Araken de ASSIS, Manual da execução, p. 297).

Diferente, portanto, da fraude contra credores, espécie de vício social que se configura a partir da violação à lei e é causa de anulabilidade do negócio jurídico praticado (CC, arts. 158, caput, 165 e 171, II), conceituando-se, de maneira ampla, como

(…) o artifício malicioso empregado para prejudicar terceiros. Compõe-se de dois elementos: um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo (eventus damni) é todo negócio prejudicial ao credor, por tornar o devedor insolvente, ou por ter sido praticado em estado de insolvência. No primeiro caso, entre o negócio do devedor e a insolvência deste, deve estar entremeado, evidente, o nexo causal, a relação de causa e efeito. O elemento subjetivo (consilium fraudis) é a má-fé, o intuito malicioso de prejudicar. Pode advir do devedor, isoladamente, como na renúncia de herança, ou do devedor aliado a terceiro, como na venda fraudulenta. Na conceituação de consilium fraudis não tem relevância o animus nocendi, o propósito deliberado de prejudicar credores. Basta que o devedor tenha consciência de que de seu ato advirão prejuízos. A fraude pode existir sem ser premeditada (fraus non in consilio, sed in evento). (Washington de BARROS MONTEIRO e Ana Cristina de Barros Monteiro França PINTO. Curso de direito civil, p.273).

A fraude à execução, portanto, prescinde da análise do elemento subjetivo, justamente por se relacionar intimamente a uma verdadeira afronta à dignidade da justiça, tal como estampado no inciso I do art. 600 do CPC/73, ainda que a multa seja revertida em proveito do credor (também “vítima” da fraude – art. 601).

Esse raciocínio fica ainda mais forte com a lembrança de que a fraude à execução é crime, tipificado no art. 179 do Código Penal Brasileiro.

Entretanto, desprezando a essência do instituto da fraude à execução, bem como toda a construção doutrinária que se fez a respeito, o STJ, a partir de seus julgados e da edição do Enunciado nº 375 de sua Súmula (“O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”), instituiu o elemento subjetivo na análise da fraude à execução e ainda, na nossa visão, impôs ao credor uma verdadeira prova diabólica nesses casos, trazendo situação processual muito mais vantajosa aos fraudadores do que ao próprio credor.

A divergência contida no voto da Ministra Nancy Andrighi no âmbito do julgamento do recurso especial nº 956.943/PR, submetido ao rito dos repetitivos (CPC/73, art. 543-C), ilustra bastante essa discussão. No entanto, as propostas feitas por ela, com o objetivo de finalmente bem interpretar o instituto da fraude à execução e mudar os rumos da equivocada jurisprudência da Corte, não foram seguidas pelos demais julgadores.

A questão não está na presunção absoluta de má-fé quando existe averbação da penhora no registro imobiliário, por exemplo, mas sim no fato de que, inexistindo a referida averbação, a má-fé continua sendo presumida, ainda que de maneira relativa, tanto em relação ao terceiro adquirente, que terá de provar a sua boa-fé no caso concreto, quanto em relação ao devedor.

O CPC, em seu art. 792, notadamente prestigia a presunção absoluta de má-fé advinda da averbação, mas infelizmente não deixa claro que, inexistindo averbação, a má-fé continuará sendo relativamente presumida. Por outro lado, o § 2º do mesmo dispositivo deixa expresso que caberá ao terceiro adquirente, que deverá ser citado antes de o juiz declarar a fraude à execução (§ 4º), no caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.

A interpretação correta do instituto continua sendo possível, tal como ressalta a feliz conclusão de Erik Navarro WOLKART sobre o tema:

Em termos práticos, caso o exequente não tenha averbado o arresto ou a penhora, as chances de procedência dos embargos de terceiro – com a consequente manutenção da alienação e frustração da execução – são enormes. Salvo se interpretarmos a nova norma no sentido de que, se o registro gera presunção absoluta de fraude, a existência da execução com citação geraria, por si só, presunção relativa. Nesse último caso, o STJ é que deverá rever o revogar o verbete 375. (Breves comentários ao novo código de processo civil, comentários ao art. 808, p. 1972).

Embora não se tenha esperança de que o STJ irá seguir a orientação da Ministra Nancy Andrighi e rever o seu posicionamento quanto à fraude à execução, parece-nos que o Código servirá, ao menos, para revogar a segunda parte do Enunciado nº 375 da Súmula do Tribunal da Cidadania, justamente em virtude do disposto no supramencionado art. 792, § 2º.

Nesse sentido, resumindo as correntes que se formaram sobre o tema, Teresa ARRUDA ALVIM, Maria Lúcia Lins CONCEIÇÃO, Leonardo Ferres da Silva RIBEIRO e Rogerio Licastro Torres de MELLO:

Com relação a necessidade, ou não, de prova da má-fé do adquirente, a questão está pacificada pelo STJ, conforme segunda parte da Súmula 375 (“o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”). Mas, para alguns, o CPC teria trazido regra expressa em sentido contrário. É o que se inferiria do § 2º que impõe ao terceiro adquirente o ônus de provar que “adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”. Para essa corrente, ao menos na literalidade da norma, o dispositivo previsto no § 2º do art. 792 teria aplicação somente para os bens “não sujeitos a registro”. Assim dependendo da interpretação que se dê a esse dispositivo, poderá haver uma modificação do entendimento jurisprudencial que impõe ao exequente provar a má-fé do adquirente. Nesse caso, poder-se-á sustentar uma inversão no ônus desta prova, cabendo ao terceiro-adquirente fazer prova de sua boa-fé e não o contrário. Firmado esse entendimento, a Súmula 375 do STJ deverá ser, na sua segunda parte, revogada, só se justificando sua manutenção quanto à existência da citação. Há autores que, de outro lado, sustentam que não se imporia qualquer modificação no posicionamento do STJ. A interpretação que fazem do § 2º do art. 792 é no sentido de que caberia ao adquirente o ônus da prova da sua boa-fé, demonstrando as diligências que tenha tomado antes da aquisição do bem, apenas na hipótese de bens móveis em relação aos quais inexiste a possibilidade de averbação no registro público. Esse não seria o caso, por exemplo, dos veículos automotores, cuja anotação acerca da propositura da ação ou atos de constrição devem ser feitos junto ao Detran. Nessa hipótese, deixando o credor de providenciar a averbação, caberia a ele o ônus de provar a má-fé do terceiro. O dissenso existe, inclusive entre os coautores destes Primeiros Comentários, de forma que caberá à jurisprudência fixar a orientação que deverá prevalecer. (Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo, comentários ao art. 792, p. 1264-1265).